A preocupação com a saúde mental dos(as) trabalhadores(as) é uma obrigação do empregador
Avaliamos ser necessária a presente manifestação, em razão de fato ocorrido durante a reunião do Conselho Universitário Temático sobre Avaliação Institucional e Docente na USP, havida no dia 23 de junho de 2025, no Auditório István Jancsó da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.
Na ocasião, o Presidente da Câmara de Avaliação Institucional (CAI) relatou que em visitas às unidades, no ano 2022, com a intenção de ouvir “críticas e sugestões” dos(as) professores(as) e servidores(as) acerca do “V ciclo avaliativo” iniciado em 2018, um dos pontos apresentados foi: “preocupação com a saúde mental de discentes, docentes e demais servidores”.
Tratando do tópico, o Presidente da CAI apenas disse que “este é um tema que extrapola a universidade”, afirmando, ainda, que esta seria “uma preocupação social”, embora tivesse reconhecido que a demanda “apareceu bastante também naquele momento”.
O chefe do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social, presente à reunião, em momento oportuno de fala, indagou se não teria havido algum engano na fala do Presidente da CAI sobre as responsabilidades da Universidade com relação à saúde mental de discentes, docentes e servidores(as).
Na resposta, no entanto, o dirigente da comissão refirmou o que havia dito, nos seguintes termos: “As questões relacionadas à saúde mental é um problema de toda a sociedade. Não seria, por exemplo, um elemento exclusivo de nós universitários. E, portanto, assim como a Universidade tem adoecido, nós também, como docentes, discentes e funcionários (servidores) também temos adoecido. Portanto, esta é uma questão de saúde pública. Portanto, uma questão mais ampla do que propriamente um elemento circunscrito à Universidade. Era mais neste
sentido. Agora, sem dúvida nenhuma nós somos afetados por conta de uma série de fatores que envolve a vida em sociedade. O que eu quis dizer é que não era estritamente uma questão particular da Universidade. Porque, repare, quando eu vou fazendo a exposição dos problemas eu vou trazendo os problemas que são concernentes à Universidade de modo mais específico e este é um problema que é sem dúvida nenhuma da Universidade, da forma como vai gerir os docentes, os funcionários, os discentes, mas que ela não é só uma exclusividade nossa. Essa é uma questão mais ampla que requer, portanto, medidas mais amplas também relacionadas a toda a sociedade.”
Consideramos muito grave tal posicionamento, eis que se apresenta, inclusive, como uma diretriz oficial da Universidade sobre o tema, mas que contraria, de forma direta, todos os estudos e compreensões jurídicas que, ao longo das últimas duas décadas, vêm se desenvolvendo sobre a questão da saúde mental no ambiente de trabalho.
O primeiro e necessário reconhecimento que se tem feito é o de que os trabalhadores e as trabalhadoras, premidos pela necessidade de vender sua força de trabalho para sobreviver, vivem, na maior parte da sua existência, em função da execução de um trabalho submetido a determinações hierarquizadas. E, com as mudanças introduzidas no modo de produção, desde a década de 90, visando aumento da produtividade, as síndromes no trabalho aumentaram consideravelmente.
As relações de trabalho passaram a se desenvolver em um ambiente de trabalho marcado pelo estabelecimento de metas; por um sistema de autoavaliação, que embute a lógica de culpabilização de si mesmo; e pelo esmulo à competição, explicitada pelas comparações.
São relações baseadas em cobranças constantes que se sustentam por um sentimento de medo, mas que, também, são permeadas de disfarces e dissimulações, notadamente com premiações e incentivos, para os que cumprem as metas e com apelos discursivos, como a da substituição da autoridade do empregador pelo implemento de uma “gestão colaborativa”, na qual o trabalhador não é mais empregado, mas “colaborador”.
As metas, estipuladas em quantidade de trabalho e não na qualidade do serviço, pois ao “colaborador” não é dado pensar os objetivos finais do serviço prestado,
são, quase sempre, inatingíveis, para que se possibilite exigir mais trabalho e para reforçar a percepção de impotência do(a) trabalhador(a). Quando são atingíveis, as metas são revistas para mais, sob o argumento de se buscar atingir uma ainda maior eficiência.
O resultado é uma sensação constante de insatisfação, de incompetência e de perda da autoestima.
A partir da disseminação das estratégias de gestão parametrizadas em metas e métodos de avaliação e de autoavaliação continuadas, o que se tem verificado são incontáveis experiências de estresse crônico no trabalho, motivador de um distúrbio psíquico chamado de “síndrome de burnout”, ou “esgotamento profissional”, como, a partir de 2022, passou a ser referido pela Classificação Internacional de Doenças – CID.
No âmbito interno, as preocupações com o tema aumentaram no período da COVID-19, resultando na Lei n 14.831, de 27 de março de 2024, que instituiu o “Certificado Empresa Promotora da Saúde Mental”, fixando os requisitos para se auferir esta certificação de empresa reconhecida como promotora da saúde mental, dentre eles a “promoção do desenvolvimento de metas e análises periódicas dos resultados relacionados à implementação das ações de saúde mental”.
No mesmo ano, em 27 de agosto, a Portaria 1.419 do Ministério do Trabalho e Emprego alterou a Norma Regulamentadora n. 01 (NR-1), cuidando do “gerenciamento de riscos ocupacionais” e fixando as “medidas de prevenção”, deixou evidenciado que os fatores de risco do trabalho podem afetar a saúde mental, devendo, pois, ser alvos de medidas preventivas.
Conforme explicitado na Norma Regulamentadora, “o gerenciamento de riscos ocupacionais deve abranger os riscos que decorrem dos agentes físicos, químicos, biológicos, riscos de acidentes e riscos relacionados aos fatores ergonômicos, incluindo os fatores de risco psicossociais relacionados ao trabalho”.
Diz também que, “a organização deve considerar as condições de trabalho, nos termos da NR-17, incluindo os fatores de risco psicossociais relacionados ao trabalho”.
E, ainda, que: “Para a probabilidade de ocorrência das lesões ou agravos à saúde decorrentes de fatores ergonômicos, incluindo os fatores de riscos psicossociais relacionados ao trabalho, a avaliação de risco deve considerar as exigências da atividade de trabalho e a eficácia das medidas de prevenção implementadas”.
Tais preocupações, inclusive, desde então, devem integrar um Plano de Ação, para a necessária Implementação de Medidas.
Lembre-se, a propósito, que a jurisprudência trabalhista há muito vem reconhecendo o sofrimento psíquico como resultado da exigência de trabalho em regime de estresse excessivo e, agora, a compreensão assente é no sentido de que o “estresse crônico de trabalho que não foi administrado com sucesso” se caracteriza como acidente do trabalho, gerando todas as repercussões jurídicas pertinentes ao instituto.
Fato é que, tendo em conta todos os estudos e normas jurídicas já bastante consolidadas, a saúde mental dos(as) trabalhadores(as), com extensão ao corpo discente, em se tratando de uma universidade, não pode ser institucionalmente negligenciada, ainda mais quando demanda neste sentido é explicitamente apresentada pelos(as) diretamente interessados(as), quando indagados(as) sobre os problemas que vislumbram com o sistema de avaliação.
Não é, pois, de um problema que extrapola a Universidade que se trata. A saúde mental é tema essencial para a Universidade e suas deliberações a respeito tanto podem reduzir o problema quanto o podem agravar.
Sendo assim, e, sobretudo, por já se terem formulado demandas explícitas a respeito, faz-se necessária, minimamente, a elaboração de um Plano de Ação, para implementação de medidas que sejam efetivas para reduzir os riscos à saúde mental dos trabalhadores e trabalhadoras da Universidade de São Paulo.
O Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social se coloca, desde já, à disposição!
São Paulo, 04 de julho de 2025