O Conselho Diretor de Base do SINTUSP manifesta, por meio desta moção, seu rechaço à minuta do “Estatuto de Conformidade de Condutas”, apresentada pela Reitoria à comunidade universitária. Embora o objetivo declarado do documento seja adequar as normas disciplinares hoje em vigor a uma organização sócio-política mais democrática, sua inspiração autoritária é similar à que deu origem às normas vigentes, escritas e aprovadas no período da Ditadura Militar, mais precisamente, em 1966.

Assim como o Estatuto dos Servidores da USP, o Estatuto de Conformidade de Condutas chega mesmo a suspender, no âmbito da universidade, direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal e por legislações ordinárias brasileiras.

Logo nos seus preâmbulos, o Estatuto propõe revogar dispositivo que permite o cancelamento de anotações punitivas nos prontuários dos servidores não docentes da universidade após transcorrido um período de dois anos de conduta irrepreensível por parte do mesmo. Isso significa que a sombra de advertências passadas poderá acompanhar toda a vida profissional do servidor. Além disso, propõe dispensar de apreciação legal pela Consultoria Jurídica os relatórios finais de sindicâncias e processos disciplinares, dando margem a todo tipo de erro na dosimetria das punições, no estabelecimento de nexos causais, etc.

Para corroborar o caráter excessivamente amplo da minuta do Estatuto no que diz respeito aos critérios das punições, a definição do que seriam infrações de potencial ofensivo elevado é inaceitavelmente frouxa e indeterminada, contrariando qualquer critério minimamente democrático de redação jurídica. No artigo 11, item VIII, para citar apenas um exemplo, enquadra-se como tal o “proceder de forma desidiosa”, dando, sob o abrigo dessa denominação genérica, um poder discricionário desarrazoado aos aplicadores das sanções administrativas.


Pior do que o mencionado acima é o cheque em branco dado às comissões sindicantes e o alcance das regras de conduta propostas pelo documento. Para ilustrar, citamos o artigo 12, item I, que prevê punição contra qualquer conduta “que atente contra as finalidades da Universidade”, mesmo que não prevista entre as proibições expressas do Estatuto. Incorre no mesmo problema o parágrafo 3º do artigo 2º, que estabelece punições a qualquer um que possa prejudicar os interesses e a reputação da Universidade, uma extrapolação até estravagante dos limites das atribuições legais conferidas ao Reitor e ao Conselho Universitário.

A cereja do bolo é o conjunto de regras que balizaria, caso aprovado o Estatuto, o comportamento discente, sujeitando os estudantes a punições severas por não respeitarem seus professores ou os valores éticos da Universidade – seja lá o que isso signifique – ou por se manifestarem em desabono da Instituição.

Reeditando uma arbitrariedade dos idos de 1964, o texto do Estatuto de Conformidade de Condutas ainda reserva espaço para reiterar a perseguição a grevistas e, consequentemente, a limitação ao direito de greve.

Em síntese, a minuta não busca uniformizar condutas em toda a universidade, mas cria, isto sim, uma ferramenta, com alto grau de discricionariedade, para ser utilizada pela burocracia universitária contra os trabalhadores, os estudantes e os professores não alinhados com a Reitoria.

É inegável a necessidade urgente de revogação do Regime Disciplinar de 1966 e dos dispositivos atávicos, do ponto de vista do Direito, e autoritários do Estatuto dos Servidores da USP. As normas disciplinares hoje vigentes na universidade têm suas origens na Ditadura Militar e carregam em seu conteúdo as marcas do período, tendo sido utilizadas para respaldar uma série de punições absurdas contra trabalhadores da universidade nos últimos anos. No entanto, a elaboração de um novo documento deve ser feita de forma democrática, envolvendo o conjunto da comunidade universitária.

O método escolhido pela Reitoria é inaceitável. Foi apresentada uma proposta integral de estatuto diretamente para o Conselho Universitário (CO), que terá até maio para indicar alterações pontuais em seu conteúdo. Importante lembrar que o CO é um órgão antidemocrático por excelência, no qual o Reitor possui controle total sobre a pauta e o andamento das reuniões, enquanto trabalhadores e estudantes são absolutamente sub representados.

Como se não bastasse o trâmite de um tema tão importante dentro de um órgão tão restrito, tal processo se dá em meio a todas as limitações impostas pela pandemia, impedindo ainda mais o envolvimento do conjunto da comunidade universitária. Por conta disso, este Conselho Diretor de Base, em reunião ocorrida no dia 16/04/2021, deliberou por subscrever o documento “Posicionamentos frente ao projeto de Estatuto de Conformidade de Condutas”, redigido por uma comissão instituída pela Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), propondo a “suspensão imediata do processo de deliberação e aprovação do projeto de Estatuto” e sua retomada depois que a pandemia terminar. Reproduzimos o referido documento na íntegra ao final desta moção.

São Paulo, 16 de abril de 2021.

Sindicato dos Trabalhadores da USP

Conselho Diretor de Base


Posicionamentos frente ao projeto de Estatuto de Conformidade de Condutas

Tendo em vista a Circular 348 do Gabinete do Reitor, datada de 21/12/2020, que solicita sugestões pontuais ao projeto de Estatuto de Conformidade de Condutas até 10 de maio de 2021, a Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) designou uma comissão para elaborar tais sugestões. Nós, que dela participamos e a ela nos agregamos, decidimos tornar públicas as conclusões que apresentaremos à Congregação da FFLCH, em 29/4/2021, e as abrimos a adesões.

1) É ponto pacífico que o Regime Disciplinar, entulho autoritário datado de 1972, precisa ser substituído. No entanto, é essencial que um novo documento se baseie em experiências democráticas e condizentes com o convívio universitário, como é o caso de práticas implementadas, há pelo menos dez anos, inclusive na esfera judiciária. Nos referimos, entre outras, à Justiça Restaurativa (Resolução 2002/12 da ONU e Resolução 225/2016 do CNJ) e a mecanismos de mediação de conflitos (Resolução 125/2010 do CNJ e Lei nº 13.140 de 26/06/2015). A Unifesp, por exemplo, criou a Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos (Resolução 162 de 14/11/2018) e a Unicamp a Câmara de Mediação e Ações Colaborativas (Resolução GR-032/2019, de 29/08/2019). Dada a importância da USP nos cenários nacional e internacional, a ela compete adotar um regulamento de convivência em consonância com essas e outras experiências contemporâneas de ponta, especialmente as que prosperam em instituições de ensino superior nacionais e estrangeiras.

2) Embora o projeto de Estatuto de Conformidade de Condutas pontue questões relevantes, sua estrutura e seu espírito reproduzem o viés punitivista do Regime Disciplinar, além de ele ser extremamente centralizador e restringir o poder de investigação, julgamento, transações e punições a poucas instâncias administrativas superiores da universidade. Não se trata, pois, de emendá-lo pontualmenteÉ preciso um novo documento que se projete para o futuro e contemple a atualidade de práticas ágeis, cooperativas e consensuais de administração de conflitos.

3) O Manual de Convivência, elaborado no âmbito da FFLCH por uma Comissão instituída pela Congregação da Faculdade, em 2012 (http://convivencia.fflch.usp.br/), em sintonia com práticas inovadoras, é explicitamente citado no projeto de Estatuto de Conformidade de Condutas, porém de forma pontual e acessória. Incoerências entre esses dois documentos são perceptíveis em muitos trechos do projeto de Estatuto, como na contradição entre a promessa de proteção de direitos político-civis e a previsão de dispositivos abertos que dão margem à punição da prática desses mesmos direitos (Ex: artigo 12, incisos I, II e III e artigo 13, inciso I do projeto de Estatuto).

4) Imprescindível, em um novo regulamento, é a incorporação efetiva de demandas e propostas plurais de coletivos, núcleos especializados, entidades, comissões e outros órgãos atuantes no meio universitário, cujas considerações sobre gênero, sexualidade, raça-etnia, vulnerabilidades socioeconômicas e capacitismo, entre outras abordagens pautadas nos direitos humanos, são cruciais para o desenvolvimento de uma cultura de paz. Todas as pessoas e grupos integrantes da comunidade universitária devem se sentir contemplados e amparados por um novo regulamento, cuja legitimidade advirá, justamente, de suas efetivas participações no processo de criação do novo texto.

Diante destes argumentos, do inegável fato de que o recrudescimento da pandemia no Estado de São Paulo e no Brasil inviabiliza a participação significativa de estudantes, funcionários(as) e docentes em debates amplos e bem articulados (pandemia que inclusive já vitimou e seguirá vitimando vários membros e familiares da comunidade USP), e em consonância com a nota da Congregação da FFLCH datada de 10/12/2020 (https://www.fflch.usp.br/3284), somos pela suspensão imediata do processo de deliberação e aprovação do projeto de Estatuto de Conformidade de Condutas.

Propomos que, após o término da pandemia e o retorno da convivência presencial, a substituição do Regime Disciplinar seja retomada em novas bases, conduzida de forma plural, transdisciplinar, intercategorias e interunidades, de modo a acolher variadas visões e a incorporar diferentes experiências e saberes ajustados a concepções inovadoras nos campos do direito restaurativo e da mediação de conflitos. Atualmente, nada disto é viável.

Assinam este texto, em 12/4/2021, aberto a adesões individuais e coletivas, os seis membros designados pela Congregação da FFLCH para retomar o Manual de Convivência 3 da FFLCH frente ao projeto de Estatuto de Conformidade de Condutas e oito pessoas que voluntariamente integraram este trabalho.

  1. Felipe Costa Sunaitis – funcionário da Comissão de Pesquisa (FFLCH)
  2. Gabriel Henrique Borges – graduando em História (FFLCH)
  3. Laura Janina Hosiasson – docente do Departamento de Letras Modernas (FFLCH)
  4. Lucas Morbach Câmara – mestrando em Ciência Política (FFLCH)
  5. Ricardo da Cunha Lima – docente do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (FFLCH)
  6. Sandra Albuquerque Cunha – funcionária do CITRAT (FFLCH)
  7. Adrián Pablo Fanjul – docente do Departamento de Letras Modernas (FFLCH)
  8. Amanda Castro Machado – advogada, secretária (Comissão de Justiça Restaurativa, OAB-SP), mestranda em Ciências Criminais (PUC-RS), pesquisadora (NADIR-USP)
  9. Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer – docente do Departamento de Antropologia (FFLCH) e coordenadora do NADIR-USP
  10. Christian Jecov Schallenmüller – docente do Departamento de Ciência Política (IFCH-UFRGS)
  11. Fernanda Elias Zaccarelli Salgueiro – doutoranda em Filosofia (FFLCH)
  12. Juliana Tonche – docente (Univasf), consultora (Comissão de Justiça Restaurativa, OAB-SP) e pesquisadora (NADIR-USP)
  13. Rafael Pacheco Marinho – doutorando em Antropologia Social (FFLCH)
  14. Tatiana Santos Perrone – doutora em Antropologia Social (Unicamp) e pesquisadora (NADIR-USP)